Ele é de Recife, estudou Artes Cênicas na UnB e atualmente mora em São Paulo. Artista e caminhante da cena e da performance, se ocupa das artes da colagem, da escrita e do movimento. Precisamos falar de Leonardo Shamah!
Ele é ator, diretor de teatro, professor e performer. Graduado em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília, foi integrante da Andaime Cia de Teatro, onde pesquisou muito sobre improviso, dramaturgia coletiva autoral, intervenções urbanas e espacialidades para a cena. Dessa parceria com Tatiana Bittar e Kamala Ramers, surgiram projetos interessantes como "Carnaval de Kitinete", experimento cênico que acontece dentro de pequenos apartamentos, e "Poéticas Urbanas", que recebeu o Prêmio Sesc do Teatro Candango de Melhor Espetáculo de Rua em 2016. Conduz pesquisa individual voltada para Poéticas do Cotidiano e da Espacialidade para a elaboração de Teatros Performativos.
Conheço Leonardo Shamah há muito tempo. Não assisti a todos os seus trabalhos, tanto por questões de agenda, quanto por fatores outros, mas é como se eu conhecesse, de certa forma, quase tudo que ele faz. Não sei se as redes sociais criam essa sensação... O que sei é que admiro o trabalho dele e sinto grande credibilidade no que faz, seja como performer, crítico ou professor. É um desses artistas que gradualmente deixam marcas e características que o representam. Claro... atribuir um marca pode restringir toda uma abrangência e pluralidade que o fazer artístico pressupõe. Então, posso dizer que uma das felizes manifestações dessa pluralidade dele foi, sem dúvida, o projeto #RotinaEquilibradaLeo, uma espécie de fotoperformance nas redes sociais.
A Rotina Equilibrada é, segundo o próprio Shamah, uma obra em processo. Ela nasceu depois de uma residência artística em São Paulo, dentro de uma experiência de troca de saberes entre a Andaime Cia. de Teatro e o circense Coletivo Instrumento de Ver, na ação Pão & Circo 3 - Política. A partir daí, o artista sentiu o desejo de equilibrar objetos na cabeça, tendo seu corpo como território de potência política. Sobre o trabalho, ele comenta:
"Em junho de 2017, estávamos vivendo o primeiro ano do golpeachment. Tinha uma revolta contida no meu corpo. Em um dos encontros eu coloquei uma garrafa de água na cabeça e sambei. Foi filmado. Assisti e disse 'isso é a crise hídrica'. Depois, fiz uma torre de moedas empilhadas sobre a minha cabeça, fotografei e com uma respiração ela desmoronou. E dissemos: as torres gêmeas!"
Essa experiência lançou uma inquietação: Que teatro ele conseguiria fazer naquele contexto político? A partir de algumas indagações pessoais, em meio ao cenário político e cultural do país, resolveu fazer todo dia uma foto equilibrando um objeto na cabeça durante um ano. É algo inusitado, provocativo e ainda está em processo. Eu, particularmente, gosto muito. Não demorou muito para que as pessoas começassem a criar significados às imagens e reproduzissem também fotos equilibrando objetos na cabeça.
"Isso virou um jogo criado pra sobreviver ao quadro precário e escasso que eu e muitos artistas estávamos atravessando. Outras pessoas que conviviam comigo começaram a aderir a essa ação como em uma brincadeira. Comecei a postar nas redes sociais e virou esse universo que era retrato do meu mundo que estava meio triste e sem perspectiva, mas onde a pulsação era lúdica e de riso".
Em junho do ano passado, Leonardo esteve na Bélgica e lá encontrou um livro do Debret. No livro, percebeu ilustrações de muitos negros carregando trouxas, cestos, bandejas, frutas, flores, utensílios na cabeça. O artista viu ali uma chave importante para essa obra em constante processo. "Quem carrega-equilibra o Brasil sobre a cabeça?" - pensou. Essas suas provocações pessoais não param por aqui...
O Leonardo que a gente conhece é também o Leonardo jardineiro de suas plantas, o faxineiro da sua casa, o leitor dos seus livros, o carregador das suas compras, o lavadeiro de suas roupas, o cozinheiro de suas comidas, o interlocutor de seus amigos, o artista de suas obras. Essas práticas desenham a ideia de cultura, de classe e de gosto. Elas ajudam a constituir sua personalidade.
"Uma vez, participei de uma residência de atuação com o diretor de teatro Matthew Lenton. No final de todos os encontros ele me olhava nos olhos e me dizia em inglês 'Estou gostando'. No último dia, ele me parou na saída e me disse 'Eu gosto do seu gosto'. Quatro vezes seguidas ele repetiu. Eu nunca recebi uma confirmação tão nítida como essa em nada na minha vida. Alguém disse 'sim' pra esse mix de coisas que eu estava levando sem saber que levava. Então, pela primeira vez eu entendi que ator tem gosto. Essa lógica de tentar atender ao gosto do diretor, e eu me formei nessa escola, retira a proposição da arte que fazemos. Já chamamos por vários nomes, mas isso talvez seja apenas arte. Até agora, temos duas palavras-chave: gosto e arte."
Em seu discurso, o artista, volta-e-meia, fala de senso de atravessamento pelas questões em torno e dentro da criação cênica. Ele lembra que em Brasília os artistas estão sempre inventando um lugar para chamar de palco, saindo para além do formato italiano. Isso, segundo ele, mostra que essa invenção constante, fora da ordem, não diz respeito apenas aos artistas, mas também à sociedade a qual pertencemos, os espaços que ocupamos. Uma espécie de contracultura natural. Ele performa na cidade e a cidade performa nele. É essa a retroalimentação constante.
O QUE MOVEU O ARTISTA A COMEÇAR?
Pra início de conversa, um desejo de expressão e liberdade!
Leonardo conta que desde muito cedo as profissões que pretendia seguir eram do campo artístico. Queria ser dançarino, desenhista, ator... Entretanto, foi estudar numa escola militar. Sua família tem lideranças evangélicas. Essas informações e vivências, foram, aos poucos, formando o artista que se tornou, seja pela negação ou pela afirmação desse contexto e modos de operar. Ele seguiu caminhando com essas referências pessoais ainda presentes e fortes. Abertura e negação, revolta e apaziguamento, parada e movimento.
Por falar em movimento, desde 2015, Shamah tem sido movido pela ação de caminhar. Tem aprendido que o hábito de caminhar é uma grande força de sua identidade. Quando morou em Brasília nunca teve carro, o que, apesar de pegar muita carona, sempre o colocou num lugar de ser caminhante. Vale lembrar que Brasília é uma cidade em contato com o verde, com a natureza. Seria inevitável admitir que a cidade é também uma instalação contínua que pede interação.
Agora, em São Paulo, ele conta que tem estudado ciências sociais, filosofia, história, artes visuais, botânica e política. Enquanto o ser caminhante não pode se mover, é isso que o tem gerado energia no período de pandemia. Segue lendo, escrevendo e lembrando como forma de movimento para os próximos meses, mesmo com a incerteza do futuro. Como muitos de nós, ele não tem agora uma ideia definida do caminho a esboçar para esse futuro. Por isso, é tempo de pesquisar, entender e lidar com o contexto atual, que mistura calma com euforia, letargia com disposição, apocalipse com gênese. Sempre organizando corpo, mente e tudo que provém dessa junção.
"Estamos vivendo uma ameaça antidemocrática, diferente de 1964 e do regime nacional socialista alemão da década de 1930. A ideia de tempo que tínhamos, pra mim, hoje é uma ideia gasta. Essa pandemia só passará na destituição de tudo que favorece a ascensão ao fascismo. A doença não pode ser uma metáfora para o que estamos vivendo politicamente. São três crises bárbaras e reais: a sanitária, a econômica e, a pior de todas, a política. Pensando nisso, vou me movendo. Literalmente. Preciso dançar mais. O corpo, diferente das máquinas, quanto mais ativado mais vivo se torna. O corpo não quebra, não para de funcionar. Quando encerro uma dança ela permanece no batimento cardíaco, na liberação de líquidos, nos pequenos tremores, no cansaço extremo, no sono solicitado."
E assim segue seu tempo de hibernação condicionada. Assim segue gerando energia para o que ainda pode vir a ser, como todo artista. É tempo de resguardo, mas esse tempo logo passará e o turbilhão chamado Shamah certamente vai nos surpreender com alguma outra ideia, com alguma outra provocação. Porém, mesmo antes desse retorno tão aguardado, precisamos falar de Leonardo Shamah!
"Enquanto eles definem o traço da linha, eu me vejo a fim de borrar a linha. Enquanto eles preenchem, eu me pego ocupado em esvaziar. Enquanto eles tornam tudo útil, eu me percebo curioso pra conhecer o que não serve pra nada. E isso não se dá com um excesso de consciência. Tem uma coisa que turva a percepção e a repetição. Desperta a evidência.
LEONARDO SHAMAH
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