top of page

FESTIM DIABÓLICO - UMA ANÁLISE DO FILME DE HITCHCOCK

Há crime perfeito? Esse é o mote para o enredo de “Rope” (Festim Diabólico), a primeira obra do diretor Alfred Hitchcock, produzida no sistema de cores, em 1948.


Hitchcock, conhecido como o gênio do suspense cinematográfico, apresenta nesse filme uma tensão dramatúrgica que impera do começo ao fim da película. Ao apresentar o assassinato de David Kentley (David Hogan) como ponto norteador dos conflitos existentes na obra, Hitchcock brinca com os bastidores de um crime impecável. Os protagonistas Brandon Shaw (John Dall) e Philip Morgan (Farley Granger) discutem pontos de ética na concretização de um crime por eliminação dos figurantes sociais, sustentando o discurso de que há pessoas que se limitam a ocupar espaço, sendo assim vítimas perfeitas para um assassinato, conforme defendido em trechos do filme.


Por questões conceituais, o filme foi rodado em oito diferentes tomadas, propondo uma continuidade realista-naturalista dos fatos, uma vez que a obra original “Rope” era uma peça de teatro. Esse é um dos méritos de Hitchcock com o filme: levar ao vídeo a mesma essência de uma peça teatral, limitando-se ao uso de recursos tecnológicos simples para conduzir o espectador ao pensamento de que tudo não passa de um único plano sequêncial de imagens – o que explica a escolha conceitual de cortes estratégicos em “crossfade” com fundo de mesma cor. Essa mesma escolha conceitual de planos sequenciais acontece também por um uso adequado dos rolos de filme utilizados pela produção – que possuíam cerca de 10 minutos graváveis, cada.


Os recursos tecnológicos citados acima são referentes à utilização de painéis com iluminação pré-programada dentro do estúdio onde foi gravada a obra. Conforme o filme se desenrola, a iluminação de um belo dia se modifica gradativamente e em sentido cronológico acelerado, transformando-se em noite e dando ao espectador a sensação de que muitas horas se passaram. Isso só foi possível graças à riqueza de detalhes que faz com que um simples painel de uma cidade artificial torne-se visivelmente crível. Neóns, fumaças e mudança de iluminação-base auxiliam a composição de um dia que se passa.


1ª Sequência


Numa rua qualquer de um bairro norte-americano qualquer, transeuntes dão vida a mais um dia comum na cidade. A abertura (contemporânea, na época) é percebida hoje como uma espécie de trecho clássico dentro de uma categoria retrô, devido às fontes gráficas utilizadas e layout dos créditos em composição com a trilha sonora. O movimento da câmera apresenta uma janela de um dos apartamentos do bairro – o local do crime. Neste momento, há um corte que apresenta o cenário principal da obra.


2ª Sequência (Plano sequencial 01) – 00:02:23

O assassinato de David Kentley é realizado por Brandon e Philip e o recurso utilizado pelo cinegrafista apresenta uma filmagem ilustrativa/demonstrativa, revelando ao espectador detalhes do ambiente que serão utilizados no decorrer do filme. A riqueza dos elementos de cenário denota uma marcação minuciosa do diretor para com a cena e os atores. Prova disso é a relação das personagens com os objetos cênicos (como o momento em que Brandon fala com Philip enquanto tenta arrumar uma vela, previamente colocada de maneira torta pela produção. A construção de um cenário realista de um apartamento dá o tom de intimidade da câmera e dos atores com o espaço, propondo ao público que também se sinta em casa. A produção de arte, atenta aos detalhes mais curiosos, não deixou passar despercebida a geladeira com os quitutes e bebidas que seriam servidos logo mais num jantar que ainda seria citado pelas personagens Brandon e Philip. Talvez seja uma das características do suspense: evidenciar que algo irá acontecer com algum elemento delatador – temos, por exemplo, a corda (título original do filme) com a qual os assassinos eliminaram David Kentley, que fica presa no aba do baú onde depositaram o corpo da vítima. O espectador vê o objeto, não cria vínculos ou leituras sobre o mesmo e uma ação seguinte logo justifica o porquê da existência do mesmo.

3ª Sequência (Plano sequencial 02) – 00:11:34

O jogo de marcações cartesianas e precisas continua por esta sequência, que apresenta ao público uma nova personagem: Sra. Wilson (Edith Evanson) a governanta da casa de Brandon e Philip.


Um dos fatores que não deixam a filmagem cansativa ou monótona pelo uso de uma única câmera é o da sincronia entre cinegrafista, atores, cenários e direção. Vários são os planos utilizados para o melhor tom de cena (planos abertos, fechados, com detalhes, focos e desfocagens). E todos são utilizados durante a filmagem em um único “take”. Esse efeito potencializa o cunho dramático das cenas, além de fazer com que o movimento quase “nervoso” da câmera seja os olhos investigativos e curiosos do espectador. Conversas em segundo plano também são bem aproveitadas, gerando uma ação quase ativa do espectador, que vê o que vai acontecer antes das próprias personagens - o que gera expectativa, tensão e um certo frisson do público. Ações precisas dos atores merecem destaque. A noção espacial de enquadramento e utilização do cenário como aliado no processo de interpretação deixam clara a proposta de direção – que esteve atenta tanto à encenação quanto ao próprio ator. Olhares cruzados, respirações tensas, movimentos minimalistas e precisos são exemplos disso.


A função ilustrativa da câmera por vezes se torna previsível (mas nem por isso desinteressante), como no trecho que em focaliza num quase “close up” a personagem Philip quebrando o copo com uma de suas mãos, apontando seu nervosismo. É nesta sequência em que as demais personagens aparecem, dando início ao que propõe a tradução do filme: um festim diabólico.

4ª Sequência (Plano seqüencial 03) – 00:26:27

Começa a anoitecer tecnologicamente e o público é persuadido a acreditar que o dia está por findar. A estratégia de aceleramento da iluminação de dia/noite funciona como uma “passagem de tempo” não literal e muito criativa.


Detalhes riquíssimos de imagens de prédios tendo suas luzes acesas pouco a pouco, com um interminável filete de fumaça das chaminés artificiais dão vida, forma e tridimensionalidade ao painel de cenário (que hoje também faz com que emissoras e produtoras utilizem recursos e criatividades analógicos para dar a mesma sensação às gravações de telenovelas e filmes, sem que para isso seja necessária a montagem de Chroma-key). Há, também, o detalhe sutil do som produzido por um toca-discos em cena. O aparelho sequer é mostrado, porém, é possível ouvir o som ao fundo, o que nos deixa um mistério: terá sido colocada a música durante a filmagem ou em ilha de edição?).

5ª Sequência (Plano sequencial 04) – 00:42:31

As evidências sobre o crime começam a tomar forma e proporção. Neste momento, símbolos do filme de suspense têm seus significados claros, dentro de uma leitura arquetípica da obra. Vem à tona o jogo de detetive das personagens e dos espectadores. A corda torna-se protagonista do clímax do filme – o sadismo de Brandon brincando com as evidências de seu próprio crime. Outros dois pontos importantes desta sequência estão na ação aparentemente simples da governanta Wilson organizando a mesa (baú) após o jantar, a ponto de quase abrir o móvel e antecipar o final esperado, através de mise-en-scène, e na despedida do professor Rupert Cadell (James Stewart) que, por acaso do destino, coloca o chapéu que pertence a David Kentley, a vítima do crime (quase) perfeito.

6ª Sequência (Plano sequencial 05) – 00:57:16

7ª Sequência (Plano sequencial 06) – 01:06:59

A reviravolta – Evidências colocadas em cheque. Jogo aberto para o início de uma investigação da ficção (descobrir o que aconteceu com David Kentley) e uma investigação do espectador (descobrir como a personagem Rupert vai justificar sua tese sobre o assassinato). “Plateia” e personagens respiram juntos nessa etapa definitiva.


Detalhes ajudaram a dar um ar de suspense (aparentemente clichês): Maçaneta da porta, revólver escondido no bolso de Brandon e movimento de câmera propondo ilustração literal do pseudoflashback da narração de Rupert (apresentando suas hipóteses sobre o sumiço repentino de David Kentley). Pouco a pouco, a versão do crime pensada e narrada por Rupert toma forma e ironia com o conjunto dos fatos. Ao apresentar em doses homeopáticas sua versão sobre o crime personagens e espectadores aguardam aproxima frase do texto para terem a certeza de que seu raciocínio está correto A cada nova justificativa dos símbolos, uma respiração de tensão e prazer é produzida pela “plateia”.

8ª Sequência (Plano sequencial 07) – 11:11:26

Para dar uma textura mais intimista, o uso de cores dos neóns dos prédios que oscilam a cada segundo é bem colocado. Os tons vermelhos, brancos e verdes preenchem as sequências finais.


Curiosamente, o último plano não ocorreu por necessidade puramente conceitual, visto que começa no black out criado pela abertura do baú onde está o cadáver de David. Ao abrir o baú, a personagem Rubert acabara de ser alvejada por um disparo de revólver – o que, provavelmente, o deixou com a mão ferida, conforme evidenciado na imagem. Porém, é possível reparar no detalhe de sua mão, desta vez com sangue no lenço que a protegia, confirmando que o corte da sequência foi realizado por uma necessidade técnica de continuidade - o que se faz preciso, no caso de interpretação e encenação realista-naturalista. Com o crime descoberto, o desfecho das personagens avança da briga e discussão para o silêncio tortuoso da verdade. Assassinos confessos (conceituais ou executantes) aguardam o julgamento da sociedade sobre o crime que acabaram de cometer.

O filme Festim Diabólico conta ainda com um trailer incomum, disponível no You Tube, pertencente à empresa Google. No trailer em questão, há uma breve explicação sobre a vida da personagem David Kentley (a vítima) momentos antes de sua morte, o que comprova que a obra cinematográfica (e demais produtos audiovisuais) podem utilizar vários recursos para atrair a curiosidade do público, de maneira linear ou não. A obra de Hitchcock possui uma das questões mais importantes dentro de uma estrutura dramática: a marca (a característica) do diretor, sem que, com isso, o trabalho do ator seja limitado. É certo que não há fórmula para o sucesso, porém, há uma fórmula “Hitchcockiana” ... que faz sucesso!

bottom of page