Ele já foi considerado o maior ator mirim de sua geração e é lembrado por papeis de sucesso na TV, mas hoje cresceu e tem um olhar mais afetuoso a respeito da própria trajetória. Confira a entrevista com Eduardo Caldas!
A pessoa que tem no currículo papeis de destaque em novelas como "Felicidade", "De Corpo e Alma", Sonho Meu", Quatro Por Quatro" e "Era uma vez" poderia ter zerado a vida facilmente, afinal, estamos falando de obras da teledramaturgia que entraram no imaginário popular e que são lembradas até hoje. No entanto, a mesma constatação de que Eduardo Caldas foi o maior ator mirim de sua geração traz outra reflexão: Como deve ter sido difícil ser criança e emendar um trabalho no outro ao longo de uma década!
O ator começou sua trajetória muito cedo participando de publicidades. Quando passou a fazer novela, em 1991, interpretou o carismático Alvinho de "Felicidade", clássico de Manoel Carlos. A dupla que Alvinho e Bia (Tatyane Goulart) formaram na novela, acabou culminando num reencontro dos dois artistas na ótima "Quatro por Quatro", de Carlos Lombardi, tempos depois.
Tratava-se de um período em que não havia tanta criança diferente para trabalhos audiovisuais. Tatyane Goulart, Fabiano Miranda, Fernanda Rodrigues, Patrick de Oliveira, Luciano Amaral, Luisa Curvo e Carolina Pavanneli representam muito bem um período em que era comum assistí-los na TV. Antes deles, Monique Cury, Isabela Garcia, Danton Mello, João Rabelo e Oberdan Junior já haviam se aventurado no mercado de produções da Globo. Diferente de Tatyane, Danton, Fernanda e Luisa, que se tornaram adolescentes e seguiram carreira de atuação na vida adulta, Eduardo, de fato, foi a criança de até 14 anos que mais participações fez na televisão ao longo de oito anos consecutivos.
O que poderia vir a ser apenas nostalgia de "Vale a pena ver de novo", Globoplay ou Canal Viva traz uma problemática que sequer poderia ser questionada entre os anos 1990 e 2000, que é a saúde mental desses jovens artistas num ambiente puramente adulto dos estúdios, tendo que conciliar a infância, a educação, o ofício e a fama.
Alguns casos de abusos físicos, emocionais e financeiros ganharam a imprensa, como os de Macaulyn Culkin nos anos 90 e da recente polêmica envolvendo Larissa Manoela, onde, em ambos, foi deflagrado o controle exacerbado dos pais diante do patrimônio dos filhos famosos.
Por isso, antes de dizer "por onde anda Eduardo Caldas", precisamos saber o que o profissional, que hoje tem 39 anos, pensa sobre sua trajetória:
"Eu sempre estive meio afastado do meu passado como ator mirim, mas nos últimos anos, acabei reparando e vi que me fechei muito sobre o que aconteceu comigo na infância. Passei por uma experiência rara na infância com esses trabalhos todos e hoje, fazendo terapia, voltando ao Brasil depois de morar fora, estou aberto a refletir sobre a infância e o trabalho", comenta.
Essa reflexão sobre sua carreira e essa nova abertura a respeito da própria trajetória veio pós pandemia, por ocorrência da reprise da novela "Sonho Meu", de Marcilio Moraes, no Canal Viva entre os anos de 2021 e 2022. Conversando com Fabiano Miranda, seu colega de cena na novela, ambos perceberam que havia histórias em comum nunca compartilhadas (ou pelo menos não comentadas). A partir desse episódio, uma revisão profunda de alguns traumas e inquietações vividos culminaram num novo trabalho artístico-pessoal: o Projeto "Atormentado".
"O que eu tenho feito é me debruçar nesse trabalho sobre o universo dos atores mirins. Desde que eu voltei dos EUA, tenho conversado com colegas que trabalharam em novelas na infância, desde os anos 1970 até os anos 2000. Essas conversas tocam em coisas não faladas, perguntas não feitas... O que significou pra eles essa superexposição à tanta responsabilidade expectativa numa idade tão curta? O que isso significou pra formação deles como adultos?", explica o artista.
Foram mais de 60 profissionais com quem Eduardo conversou. Trata-se de uma pesquisa inédita sobre o mercado de trabalho para atores mirins, principalmente pelo impacto real (e muitas vezes doloroso) na vida dessas crianças. As entrevistas de "Atormentado" são conduzidsa pelo próprio Eduardo e, por ter vivido tantas situações ao longo de tantos trabalhos, a identificação com as dores e delícias dos companheiros de profissão gera algo que coberturas de imprensa habituais não atingem: a empatia! A empatia de quem viveu essa rotina de estúdio, de textos decorados, de ambiente de gravação e de quem sabe o quão difícil foi aliar tudo isso com estudos, com as relações familiares e com as demais relações interpessoais.
No caso de Eduardo Caldas, ele passou anos sendo exibido na TV em obras inéditas ou em reprises, fazendo que o público tivesse ainda mais a impressão de que ele era um rosto familiar na sala de casa. A nível de informação, Eduardo esteve na TV nas seguinte ocasiões:
1991 - Novela Felicidade
1992 - Novela De Corpo e Alma
1993 - Novela Sonho Meu
1994 - Novela Pátria Minha
1995 - Novela Malhação
1995 - Novela Quatro Por Quatro
1996 - Novela Malhação de Verão
1996 - Novela Vira-Lata
1997 - Novela Zazá
1998 - Reprise de Felicidade
1998 - Novela Era Uma Vez
1999 - Reprise de Quatro por Quatro
1999 - Minissérie Chiquinha Gonzaga
2000 - Episódios do Você Decide
2007 - Reprise de Era uma Vez
2010 - Reprise de Quatro por Quatro
2011 - Reprise de Chiquinha Gonzaga
2012 - Reprise de Felicidade
2012 - Reprise de Chiquinha Gonzaga
2021 - Reprise de Malhação
2022 - Reprise de Malhação de Verão
2021 - Reprise de Sonho Meu
2022 - Reprise de Era Uma Vez
2022 - Reprise de Chiquinha Gonzaga
Como não encarar a imagem do ator a algo comum aos brasileiros? Ao longo dos anos, Eduardo Caldas sempre esteve em voga. Foram nove anos no ar que renderam outros anos de reexibições. E ainda nem consideramos as inserções de novelas com ele nas plataformas digitais.
"Eu fiz nove novelas em oito anos, além de minissérie e programas. Eu sumi, mas eu vivi. Depois de um período trabalhando como ator, comecei a sentir um desconforto. Evitei falar sobre isso da infância, passei a adotar o nome Eduardo Albuquerque para dar um distanciamento mesmo. Foi preciso. Mas eu sigo a vida na arte... Sou roteirista, diretor, tenho consciência desse sucesso todo, mas me afastei. Hoje eu tenho consciência de que não precisava 'matar' o Eduardo Caldas', mas evitar falar foi algo que fiz num momento em que precisei muito", comenta.
Agora, depois do reencontro com os colegas de "Sonho Meu" e das várias entrevistas do projeto "Atormentado", Eduardo, que por um tempo assinou Albuquerque, quer encarar de frente o que foi a era Caldas. A maturidade faz isso... Faz com que olhemos com mais ternura o adulto que nos tornamos e a criança que construiu esse adulto. É comum observarmos nas redes do artista fotos, recortes de revistas, trechos de vídeos de bastidores ou dos próprios capítulos editados - um verdadeiro relicário de quem se abraça e abraça sua própria história com afeto, respeito, mas sem passar pano nas dores existentes. Pelo o que Eduardo posta no instagram, dá para perceber que existe um acervo grande em processo de digitalização de suas memórias.
"Sabe o Tony Tornado? Nos anos 1990, ele, muito esperto, oferecia um serviço de gravação de capítulos de novelas. Tinha vários videocassetes e os atores que quisessem pagavam e ele pra que entregasse as fitas só com as cenas de quem contribuía. Assim, acabei guardando muitas fitas VHS, mas eu também tinha uma câmerazinha e registrava muita coisa dos bastidores de 'Vira-Lata' com ela. Esse material resgatado estará no 'Atormentado'. Minha mãe guardava recortes de jornais, fotos e alguns desses materiais eu tenho colocado no ar."
O teaser de "Atormentado" já foi colocado no ar no Instagram. Não é propriamente um documentário. Na verdade, é um guarda-chuva de ações, que vão desde o lançamento de um podcast até as entrevistas, pesquisa científica e até algumas performances de vídeo em locais que têm um significado pra ele, como o Bairro Peixoto (de "Felicidade") e até a própria porta da Globo no Jardim Botânico. Naturalmente, esse movimento despertou a curiosidade de muitas pessoas nas redes. Sobre o motivo de sua saída, ele explica que não houve um ponto específico, mas várias inquietações pessoais que surgiram durante seus últimos trabalhos:
"O que aconteceu pra mim, de forma prática, é que eu estava mais interessado em coisas normais da adolescência do que sair para gravar. Um dia, ganhei um CD e quis ficar em casa ouvindo o disco em vez de sair e entrar no estúdio. Meu coração passou a não estar muito alegre como já tinha ficado antes. Eu sinto que dei tudo de mim nesses anos de trabalho e que a TV também sugou de mim muita coisa. De repente, me senti cansado. Quando fiz 'Zazá' já comecei a sentir esse desconforto, esse questionamento interno, sabe? 'Zazá' foi um momento curioso: o Jorge Fernando me chamou e disse que eu estaria com nomes como Fernanda Montenegro, Ney Latorraca, Alexandre Borges... Era uma novela com tanto ator bom, mas não tinha história para todos. Mesmo com esse elenco estelar, a trama não pegou. Eu ia fazer um par com a Fernanda Rodrigues, mas ela saiu pra fazer outra novela e aí a coisa ficou morna. Depois foi criado um outro enredo pra mim, mas a coisa não andou. Ainda fiz 'Era uma vez', da qual gostava muito, gravei "Chiquinha Gonzaga' e uns episódios seriados do 'Você Decide'. Eu não assistia às novelas. Ia pra escola cedo, depois um carro me levava pro Projac, gravava até a noite e depois ia pra casa. Não tinha nem como saber se a novela era boa ou não, mas com 'Zazá' eu já sabia que havia algo estranho ali", reflete.
A abordagem dos fãs hoje mudou. A geração de pessoas que abordam Eduardo nos bares e nas ruas atualmente é outra... É a geração +35. Isso faz com que essas abordagens sejam mais responsáveis, uma vez que a maturidade vem para todos. É o reencontro de alguém que representou algo na infância e na adolescência de ambos (ator e público), o reencontro de narrativas e trajetórias. Agora, perto dos 40 anos, perguntamos a Eduardo como ele se sente nesse momento:
"Eu me sinto com muito tesão nesse momento em que estou chegando aos 40. Muito melhor do que quando cheguei aos 30, na verdade. Estou animado em poder revisitar, rever minhas narrativas com um sentimento muito mais tranquilo sobre tudo na vida e podendo abraçar toda a minha totalidade, sem precisar tirar parte de mim, que é o que eu estava fazendo ao anular a memória do período em que atuei. Por muito tempo, eu quis ser essa criança perfeita, amada por todos. Fui beber cerveja pela primeira vez aos 26, justamente porque havia essa cobrança interna de não decepcionar a projeção que o outro tem sobre mim e quem eu sou. Por sorte, passou! Tô revisitando tudo agora, aos 39, para fazer disso um produto artístico. Eu não sei fazer arte sem ser algo autorreferencial. Nem sei se é possível isso, pois tudo que a gente faz tem a ver com a forma com a qual a gente vê o mundo. Espero que esse trabalho, o 'Atormentado', seja muito importante. Estamos estabelecendo uma literatura, uma pesquisa científica sobre o assunto do trabalho da criança no audiovisual para um debate mais amplo."
Foi realizado por Eduardo e sua equipe um formulário para levantamento de dados sobre os efeitos da exposição da criança na TV, a fim de que mais estudos possam utilizá-los como referencial bibliográfico. Nesse formulário entregue aos artistas que deram as entrevistas, perguntas sobre grau de escolaridade, porcentagem de reprovação de atores mirins na escola durante as gravações e dados sobre onde a criança morava antes e depois de fazer TV serão investigados, catalogados e elencados para um melhor entendimento a respeito dos Indíces de Desenvolvimento Humano desses indivíduos. Obviamente, são muitos os desdobramentos da pesquisa, pois as experiências desses atores mirins mudam de acordo com o tipo de trabalho, o gênero, classe social, apoio da família, indo muito além da fama e da ausência dela. Se o instrumento do trabalho do ator é o corpo e a mente, as emoções dessas crianças, dentro de um contexto cênico, requerem um entendimento mínimo de métodos de atuação para que elas possam trabalhar e viver sem terem uma experiência traumática nos sets.
"Uma criança que vai trabalhar no audiovisual, seja com dinheiro incentivado ou por contratos em emissoras, precisa ter um atendimento psicológico oferecido. Não é que não tenha que ter criança no audiovisual, mas existem melhorias que podem ser feitas dentro e fora do ambiente de trabalho para que a criança viva sua vida de maneira saudável. É importante passar para o público que esses problemas dos abusos emocionais e financeiros para com crianças artistas existem. A sobrecarga existe. O público é parte dessa engrenagem, pois também cobra. Crianças artistas fazem parte da sociedade e a sociedade precisa estar preparada pra esse debate. Eu entendo que na TV a gente entra na casa da pessoa, mas essa intimidade é a intimidade de uma representação e não daquela criança em si. Se a gente não materializa esse conhecimento, ele não existe!", finaliza Eduardo.
Até o momento, foram mapeados 150 nomes de atores mirins dos anos 1970 aos anos 2000 - o que é pouco, num parâmetro geral da categoria de artistas brasileiros. Esse número também explica a dificuldade na compreensão dos desafios enfrentados por essas crianças e adolescentes que se calaram por décadas e nunca puderam falar abertamente sobre situações de abusos, dúvidas e inquietações pessoais.
Para saber mais sobre a pesquisa de Eduardo Caldas e sua equipe, fique por dentro da rede do artista: @oeduardocaldas.
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