Aquela manhã de março de 1996 foi aterrorizante para crianças, adolescentes e seus pais. A todo instante, o Plantão da Globo anunciava que mais um corpo era encontrado na Serra da Cantareira. A tragédia espantosa comoveu o Brasil e hoje os Mamonas Assassinas têm um lugar afetuoso no coração de quem viveu aqueles loucos anos 90.
Um show apoteótico em Brasília. Eu estava na 4ª série e me recordo que uma agência de eventos foi à minha escola para distribuir algumas cortesias aos estudantes. Meus olhos brilharam e, no fundo, eu sabia que ninguém lá de casa me levaria ao show. Fiquei com muita inveja dos coleguinhas que pegaram o cartão promocional. Isso foi num sábado.
No domingo de manhã, despertei com minha irmã gritando: "Junior, acorda! O avião dos Mamonas caiu". Resmunguei alguma coisa, meio incrédulo e reclamão e, em seguida, ouço outro grito: "Vem ver!". Era aquele plantão extraordinário da Globo mostrando uma repórter falando de uma tal de Serra da Cantateira. Ali começou um dia inesquecível.
A cada entrada do plantão naquele domingo uma dor diferente no coração. Por ser menino, pra mim. era uma grande mentira aquilo tudo, afinal, eram meus ídolos daquela fase de minha vida. Com informações meio desencontradas, passamos a mudar de canal. Na Globo só entravam os plantões, que eram longos, mas que não falavam muito. Na Manchete, um show de horror assustador para qualquer telespectador. Era a repórter entrando dentro da mata junto com a equipe de bombeiros e narrando, passo a passo, o que ela estava vendo. Meus olhos de menino sequer acreditavam naquilo. Lembro que a repórter da TV Manchete chegou a disfarçar o enjôo provocado pelo o que ela via. E como nós não víamos o que ela via, o pavor tomava conta de nossa imaginação.
Nessa troca de canais e nas entradas do Plantão fomos, pouco a pouco, informados sobre os corpos encontrados. A minha cabeça de criança pensava: Não acharam o Dinho... Então é porque ele estava vivo em busca de socorro.
As reportagens começaram a especular que, provavelmente, ele devia estar no banheiro ou na cabine do piloto, pois os outros tripulantes foram encontrados num raio de distância razoavelmente perto. Que terror aquilo tudo. Que terror!
Não sei se foi na Manchete ou no SBT que vimos o tio de Dinho lamentando (ao vivo) sobre ter encontrado o corpo do vocalista. Na verdade, ele disse em rede nacional que achava que era o sobrinho porque reconheceu o short dele. Meu Deus... Isso pra uma criança foi macabro, cruel, inimaginário, estarrecedor. Logo, as emissoras cobriam, cada uma a seu modo, aquela tragédia brasileira. E jamais me esqueço da mais triste das imagens... O que, pra mim, tenha sido, talvez, a mais crua que minha vida havia presenciado, até então: Um helicóptero içando os corpos dos Mamonas, um a um, com uma multidão ao redor vendo aqueles caixões de metal no chão, onde seriam alojados e levados ao IML.
Assustador.
Assustador.
Assustador.
Mas os Mamonas eram alegria! Eram deboche. Eram aquele som de rock pesado, bem gravado, bem executado, com letras de duplo, triplo sentido que nos divertiam naquele universo brasileiro em que o politicamente incorreto era comum.
Conheci os Mamonas num programa do Faustão em 1995. Não sabia quem eles eram e me lembro do apresentador dizer: "Pela primeira e última vez na Globo!". Isso porque eles já eram famosos no circuito musical de São Paulo e, quando foram ao Rio, foram apresentados a todo Brasil. Suruba, porra, comer tatu é bom, passar a mão na bunda, depilar os cabelos do saco... Aquilo nunca havia sido verbalizado com tamanha naturalidade. Era a quebra de um decoro musical e televisivo apresentada de uma maneira irreverente e deliciosa. Eles eram super-heróis, eles eram pernalongas, chapolins, he-mans... Eram o que quisessem. Depois dessa apresentação, eles estavam em todos os programas do país.
Inesquecível aquela participação deles no Domingo Legal, de Gugu Liberato. Mamonas na banheira, Mamonas na brincadeira dos bichos, Mamonas debochando de Silvio Santos. Que tardes loucas e psicodélicas aquelas.
O Cd era caríssimo! Lembro do preço: R$15,00 - o equivalente a, mais ou menos, uns 90,00 reais hoje. Ou mais. O LP já era difícil de ser encontrado. Mas na loja custava R$10,00 (caro também). Sobrou pra mim, então, a fita da EMI Music, que custava só R$3,00 (só não... porque era tipo uns 20,00 hoje).
Aqui em casa a fita rodou, viu?! Rodou porque não era só o álbum pra criança. Os pais liberavam também e gostavam de mostrar as músicas pra outros adultos. Era uma permissão, um decoro consentido (com ressalvas).
Obviamente, hoje entendemos que havia essa liberdade de falar besteira naquele Brasil dos anos 1990 onde ralar o tchan era normal. Há muita misoginia e há muito machismo nas canções. Cantávamos sem perceber (ou sem querer, querendo). Se hoje "Robocop Gay" toca bastante nas baladas e faz todo mundo soltar a franga, na época, por mais que a letra falassse de uma hipotética saída do armário, o modo com o qual a performance dos Mamonas ilustrava a música, só alimentava um achincalhe à comunidade gay. Ok, ok, ok... Era legal, mas era o estereótipo do que se entedia como gay em 1996 - algo mais ligado à uma confraria "alegre" do que à uma realidade que sempre existiu e que sempre foi negligenciada.
"Tu voltaste, tão bonita, monoteta... Mais vale um na mão, do que dois no sutiã" - Entendeu a gravidade do machismo engendrado como combustível do humor fácil?
Perdoamos vocês, Mamonas... Perdoamos porque, naquela época, também estávamos cegos e alheios às questões que, hoje, são tão importantes para uma maior e melhor unificação social. Perdoamos, Mamonas, porque fomos muito, muito felizes com vocês. Perdoamos porque a música "Lá Vem o Alemão" é maravilhosa e onde toca, todo mundo canta com muito fervor até hoje. Perdoamos, porque a tragédia pela qual vocês morreram, foi feia, cruel, amplamente exposta e tristemente inesquecível. Eram cinco meninos de Guarulhos tentando fazer música. Quando conseguiram, o avião de prefixo PT-LDS entrou na rota errada, arremeteu e bateu na Serra da Cantareira.
A volta pra escola nem aconteceu. Na segunda-feira, pedi à minha mãe pra ficar em casa e acompanhar o velório deles na TV. FIzeram uma versão instrumental triste de "Pelados em Santos". Eu chorei muito vendo aquele cortejo ao vivo na TV. Na terça seguinte, já na escola, descobri que os outros colegas também não tinham ido à aula no dia anterior. Foi um grande luto infantil. Pedi dinheiro à minha avó e corri na banca pra garantir uma edição histórica da Revista Fatos e Fotos, com pôsteres deles. Tenho ela dobrada e toda amassada até hoje pra nunca esquecer.
27 anos depois, ainda lembro disso.
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