Não tem edital aprovado? Não tem incentivo do governo local? Não tem arquibancada? Não importa! Samambaia prometeu entregar arte de qualidade ao público e promoveu uma noite memorável!
Nascida em 1997 por meio da mobilização de grupos jovens ligados à igreja, a Via Sacra de Samambaia adotou o nome de "Paixão do Cristo Negro" em 1998, chamando a atenção da imprensa, da igreja e da comunidade ao apresentar um ator preto da própria cidade. Ao longo dos anos, a encenação, que começou com a tradicional procissão, foi se adaptando e instrumentalizando professores e participantes.
Em 1999, do alto de um caminhão, o evento saiu da igreja e teve palco improvisado com apoio de patrocinadores locais. Em 2000 e 2001, um palco mais moderno e microfonado facilitou o acesso e a fruição do público. A produção ganhou novos ares em 2002 com uma cidade cenográfica, modelo adotado até meados da década de 2010 e interrompido pela construção de edifícios onde, por anos, a locação foi montada.
A Paixão do Cristo Negro foi por muito tempo a segunda maior encenação teatral do gênero a céu aberto do DF e o teatro começou a ser levada a sério pelos organizadores. Aos poucos, moradores da cidade saíram das oficinas de verão promovidas para a construção da via sacra, migrando para as faculdades de artes da UnB e do Dulcina. Esses mesmos aspirantes voltavam entre os meses de janeiro e abril para conduzirem os novos ensaios, trazendo linguagem técnica e profissionalismo ao projeto, que se tornou um verdadeiro exportador de artistas do DF.
A cara da Paixão do Cristo Negro é a cara da própria periferia. Um Jesus que discute as mazelas sociais, a questão do racismo e dos mais diversos preconceitos, usando a história que teve seu berço na religião como forma de conscientização do público a respeito de sua própria vida.
Com o passar dos anos, as políticas culturais foram se transformando e, ao perder o espaço da cidade cenográfica, o projeto precisou se adaptar sem verba e sem a mesma estrutura que movimentava a economia criativa local. Em 2019, a última encenação ocorreu em meio à chuva e sem interesse governamental em fomentar o maior projeto cultural da cidade.
A pandemia interrompeu essa engrenagem e a Paixão retornou em 2024 entendendo o seu lugar social e cobrando pela manutenção de um movimento essencial pra cidade.. Por sorte, hoje o Complexo Cultural Samambaia é um espaço exclusivo para manifestações artísticas e acolheu o evento que enche a população de orgulho. O espetáculo, já apresentado em caminhões e cidade cenográfica, voltou ao palco... Dessa vez, um palco italiano, numa caixa cênica própria para apresentações cênicas.
No texto, adaptações que unem diferentes amarras dramatúrgicas, com pitadas de trechos da Teoria da Libertação, de Leonardo Boff, da bíblia e de artistas do DF como Gilberto Alves, Paulo Russo, Josuel Junior e Neimar de Barros, este último autor do arrebatador texto usado para a cena do arrependimento de Judas, extraído do livro "Deus Negro". Aliás, a cena de Judas, feita pelo multiartista Vírgulas, foi merecidamente ovacionada pela plateia participativa e atenta.
Ana Eulália Oliveira, Márcia Costa, Maria Félix e Diva Félix são patrimônio do projeto e também marcaram presença na edição de 2024, bem como outros nomes que possuem em seu DNA a cara da paixão, como Péricles Lira, Benedito, Seu Luiz, Clara Abreu, Tássia Martins, Letícia Azôr, entre tantos outros.
Na plateia, ex-participantes que décadas antes já deram vida às mesmas personagens. Foi quase um reencontro de um elenco mais maduro que assistiu generosamente o trabalho de uma nova geração de artistas.
Narradoras levaram ao público um contexto marginal e questionador às cenas. No palco três atores deram vida a Jesus, mesclando intenções e deixando explícito que havia na escolha dramatúrgica e de encenação a visão de um Jesus mais complacente e religioso, um Jesus mais anarquista e questionador e um Jesus que transitava entre poesia e o lirismo irônico. Alan Mariano (que também dirigiu cenas), Lucas Mourão e Johny Carvalho assumiram o desafio de dividir o papel. A cena da crucificação escancarou cartazes que mostraram o descaso do GDF e da Secretaria de Cultura à essa que é uma das mais potentes ações culturais e artísticas da Macrorregião 1.8, que abraça das cidades de Ceilândia, Pôr-do-sol, Sol Nascente e Samambaia.
Ao final, a tradicional coreografia de encerramento foi realizada num retubante rito de protesto com street dance ao som de Belchior. Isso mesmo! Entoados por "Sujeito de Sorte" em versão remixada, bailarinos e elenco performaram um dos mais emocionantes momentos do espetáculo, que teve um momento surpresa: os três intérpretes aparecem representando a periferia, a diversidade religiosa e a tradição, mostrando que Samambaia, quando promete, entrega um produto de qualidade ao público, que saiu feliz e contemplado com o retorno de um evento que jamais deveria ter parado.
O projeto foi realizado pelo Imaginário Cultural com apoio da Adm. de Samambaia e direção geral de Gilson Cezzar
Comments